Formação em Psicologia e população em situação de rua: saberes e fazeres em Salvador e São Paulo

Authors

Renan Vieira de Santana Rocha (organizador)
Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL)
https://orcid.org/0000-0003-4981-2854

Keywords:

Psicologia, População em situação de rua, Salvador, São Paulo

Synopsis

A formação em Psicologia, hoje, é amplamente atravessada pelas questões que envolvem a luta por Direitos Humanos (DH) e Políticas Públicas (PP) que efetivamente atendam às necessidades da população brasileira. Contudo, isto se dá pelo reconhecimento de que partimos, historicamente, de uma Psicologia endurecida, forjada na Ditadura Civil-Militar Brasileira, pouco afeita às questões mais progressistas. É do lugar de uma reparação histórica ante os eventos de nosso passado que, portanto, estamos a falar.

Paralelamente, os estudos sobre a questão da raça e da saúde no Brasil também fazem provocações à Psicologia, quando compreendem o lugar da antropometria e da frenologia no Brasil e no pensamento psicológico primordial sobre tais questões, em que o negro fora constituído como sujeito “naturalmente degenerescente”, “tendente à criminalidade e à loucura”, sendo necessário “limpar o gene nacional” – todas expressões dos ditos estudos do racismo científico dos séculos XIX e XX em nosso país. Estes pensamentos criaram a base de projetos jurídico-institucionais nacionais, por exemplo, voltados ao encarceramento, à exclusão e à marginalização da população negra: criminalizou-se a capoeira, o samba, as “feitiçarias” (nome pejorativo dado às religiões de matriz africana), a “vadiagem”, etc. Isto resultou em processos como o encarceramento em massa da população negra – nas prisões, mas também nos manicômios – e ao seu deslocamento compulsório para o espaço das ruas, seja na expressão de ocupações, seja na expressão do “viver na rua” propriamente dito.

Logo, com tais afirmações, queremos postular duas coisas que são pilares para o que se verá nesta obra: (1º) a base de formação da população em situação de rua brasileira é total e absolutamente racializada; (2º) o pensamento psicológico nacional produzido no século XX produziu e/ou colaborou com tal formação, o que nos coloca o compromisso irrevogável de, desta forma, debruçarmo-nos na produção de saberes e fazeres psicológicos críticos, contemporâneos e contextualizados com as necessidades históricas e atuais de nosso povo. Pensar a Psicologia atenta e preparada para a atuação com a população em situação de rua, então, configurar-se-á como um dever ético-político em nossa profissão.

Com a pandemia do novo coronavírus, isto se destaca ainda mais. Se tomarmos a cidade de São Paulo como exemplo analítico, veremos que, em pesquisa produzida pela Prefeitura, em 2020, constatou-se que os homens constituem 85% das pessoas em situação de rua na capital paulista; e, deste total, 70% são pessoas negras. Desta forma, o homem negro, com média de 31 a 49 anos, é o perfil principal da pessoa em situação de rua neste cenário, que é constituído por um total de 24.344 pessoas nestas condições, 60% superior ao identificado em 2015, contingente que é 32% superior ao previsto pela Prefeitura para o período. Já no Rio de Janeiro, que também tomaremos como exemplo, por ter sido a única capital a produzir dados sobre esta questão durante a pandemia, em 2021, veremos que 31% das pessoas identificadas estão em situação de rua há menos de um ano, sendo 64% destes por perda de trabalho, moradia ou renda; portanto, durante a pandemia do novo coronavírus. Isso representa um aumento de 20% do contingente, em um intervalo de 1 ano e 3 meses, e deve servir como um alerta de que esta questão, inequivocamente, se tornará mais agravada ao longo dos próximos anos, e demandará da sociedade, e das diferentes profissões da saúde, a capacidade de lidar com a problemática em tela de maneira eficaz, eficiente, efetiva e contextualizada histórica e contemporaneamente com a sociedade brasileira.

E o que tudo isso provoca à Psicologia? A necessidade de pensar, profissional e academicamente sobre o tema; a capacidade de atuar na área, de forma crítica e atenta a estas variáveis; a observação de que o cuidado à população em situação de rua, quando pensamos estas questões no bojo dos DH e das PP, tem algo de sui generis, pelo (des)lugar da população em situação de rua; e a urgente compreensão/constatação de que é impossível cuidar clinicamente de pessoas em situação de rua sem essa perspectiva crítica; lócus em que esta obra, simultaneamente, se justifica e se localiza.

No primeiro capítulo da obra, de autoria de Souza Alves, Rocha e Rodrigues, vemos uma aguçada discussão sobre a formação da cidade de Salvador e sobre como esta formação produziu a população em situação de rua a partir das contradições inerentes ao processo de urbanização dos grandes centros urbanos, evidenciando, inclusive, os atuais processos de “revitalização” dos centros como justificativas para a continuada exclusão e marginalização das pessoas em situação de rua, expulsas dos centros para a direção das margens das cidades. Encontra coro na discussão presente no segundo capítulo da obra, de autoria de Paixão, Rocha e Rodrigues, em que se articula a discussão sobre o racismo estrutural como constituinte histórico da formação da população em situação de rua salvadorense e brasileira, e em que somos provocados, a partir dos estudos de Ignácio Martín-Baró, sobre como a conscientização e o aquilombamento desta população são importantes processos no sentido de sua libertação e da qualificação dos cuidados em Psicologia.

Nos terceiro e quatro capítulos da obra, vemos essa discussão transpor-se, com maior intensidade, para as variáveis que a pandemia do novo coronavírus impuseram diante dos modos de cuidado, em Psicologia, à população em situação de rua e seus familiares. O texto de Carvalho, Santiago, Rocha e Rodrigues debruça-se sobre uma interessante experiência de uso dos recursos de comunicação, na pandemia, para o desenvolvimento de ações de redução de danos em Salvador, pensando possíveis reinvenções do saber-fazer psicológico. Iguais reinvenções, desta feita, veremos no texto de Lima, Rocha e Rodrigues, em que abordar-se-á sobre novos modos de cuidar de familiares de pessoas em situação de rua por meios remotos, postas limitações de circulação e aglomeração impostas pela pandemia ora vivenciada, destacando um caso acompanhado também na capital baiana.

Fechando a obra, transitamos das experiências desenvolvidas em Salvador para experiências desenvolvidas em São Paulo, destacadamente a partir de um Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS) e de um Centro de Acolhida (CA). No texto de Bernardo, Nascimento, Mendes e Rocha teremos um vislumbre de possíveis modos de cuidado não direcionados diretamente a usuários e/ou familiares dos serviços, mas aos seus próprios técnicos, no tocante a como estes vivenciam o cuidado a pessoas em situação de rua e a como estes podem, também, se (auto)cuidarem. Já no texto de Figueiredo, Cabral, Febraio e Rocha, que fecha a presente obra, veremos importantes contribuições sobre como os estereótipos construídos sobre a população em situação de rua podem figurar como impeditivos à oferta de um cuidado efetivamente comprometido com uma perspectiva crítica e emancipatória em Psicologia – erigindo desafios que, cremos, cabem a toda Psicologia se questionar.

Ao cabo e em síntese, cumpre-nos dizer que a presente obra é, portanto, fruto de seis experiências desenvolvidas em estágios na área de Psicologia, o que aponta a presente coletânea como um esforço de (re)afirmar a relevância desta discussão em um lugar que tomamos por essencial: a formação acadêmica e profissional de psicólogas e psicólogos. Se entendermos este lugar como espaço privilegiado de produção de boas práticas, poderemos construir profissionais que, em sua prática, produzam muito mais saúde e bem-estar do que revitimização e estigma – fenômenos estes últimos com os quais a população em situação de rua já lida cotidianamente. Assumindo, assim, o relato de experiência como método basilar, apostamos no compartilhamento de boas práticas como horizonte formativo emancipatório, e esperamos, verdadeiramente, que este seja um manifesto pelo bom cuidado em Psicologia junto à população em situação de rua no Brasil.

Published

January 4, 2022

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